Feliz era Cecília, que tinha Peri, Loredano e Álvaro.
Segundo José de Alencar: "Loredano desejava; Álvaro amava; Peri
adorava." E aqui se criaram três facetas bem diferentes do que a gente
pode tentar chamar de amor, aquele, o eros.
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Eu vinha da Central do Brasil, no horário em que os trens
pulsavam em plena vida. As pessoas se apinhavam na plataforma a espera de um bloco de metal sobre trilhos. Havia uma vontade desesperada de chegar em casa. O dia na joalheria da zona sul tivera sido
fastidioso, mas ao menos a educação dos clientes endinheirados compensavam um
pouco. Com a bolsa a tiracolo, decidi que não dormiria na casa de meus pais em
Botafogo. Fabrício tinha me ligado e me relatado um mal estar febril, o que me
causaram preocupação. Era, portanto, dia de visitar o meu sapo plebeu que vivia
escondido nos confins da zona oeste, em Bangu. Ele precisava de um banho frio
forçado!
Com esforço e a custa de uma cotovelada na costela, consegui
entrar no trem. Sustentava-me com dificuldade naquelas barras de ferro
disputadas como provimentos servidos pela ONU para vítimas de alguma
catástrofe. Era o caos. Eu amaldiçoava o fato de ter ido trabalhar de
rasteirinha naquele dia, porque mesmo na ponta do pé, eu não ganhava altura
para ver se uma corrente de ar um pouco mais limpa e fresca passava acima da
minha cabeça.
- Você pode me dar licença, queridinha?
- Mas licença não cria espaço, senhora... - respondi
ressentida, sem conseguir deslizar nenhum pouco para a esquerda.
Na certa os gestores da Supervia andaram cabulando algumas
aulas de física e se meteram a pensar que dois corpos podem, sim, ocupar o
mesmo lugar. E a gente paga caro para ser açoitado como gado no pasto. Eu só
poderia mesmo amar Fabrício. Nada menor que este sentimento resistiria ao teste
de resiliência a que eu era imposta todas as vezes que decidia cruzar a cidade
para vê-lo.
No caminho, uma senhora falava alto ao telefone. Eu tentava relevar
sua voz para que o meu grau de irritabilidade não fosse tal que eu cogitasse
fazê-la engolir aquele aparelho eletrônico, mas eu não podia. Ela tinha tirado
um saco de biscoitos de uma sacola plástica e, enquanto esfarelava e esganava
miseravelmente aquilo, falava. E comia. E falava. Não havia quem, naquele
vagão, não estivesse tomando ciência da sua vida naquele instante. Ela falava
com o esposo e planejava um churrasco no fim de semana, com direito a uma festinha
depois, em algum 'hotel' com hidromassagem próximo a casa deles. Este fato, que
há muitos despertou o riso, me causou asco. E o nível não tardou a descer ainda
mais, em que pese algumas descrições e incitações de como seria este encontro
dos dois.
Enquanto tentava me convencer que a cada casal compete criar
suas próprias regras e que não há ortodoxias nas expressões de amor, pensava de
forma resvalada no meu próprio namoro e nas vezes em que Fabrício agia como se
simplesmente fosse marionete de sua libido. Eram sempre as noites mais quentes.
E, de um observador mais incauto, talvez também pudesse haver registro de
repugnância em relação a gente. Mas ele era também amoroso em outros momentos
e, não raras vezes, eu me via como uma santa esculpida em alabastro, sendo
cultuada por sua dedicação.
Não. Quem quer que realmente queira se jogar de cabeça num
relacionamento vai descobrir que a reinvenção é palavra de ordem e que,
mostrar-se como somente o apaixonado, é querer pintar de um limitante vermelho
uma parede que admite quase todos os espectros de cores. Eu poderia até ser
odiada por Fabrício às vezes, o que não raro acontecia quando brigávamos, mas
ao menos sabia que eu não era apenas uma coisa pra ele. Eu era um desafio mais
complexo e criativo, que poderia entretê-lo por muito tempo, para além de um
possível casamento até. Suspirei sonhadora naquele mar barulhento e suado.
Aquela senhora gorda, que não decidia se amava mais aos
biscoitos ou o sexo de seu marido, ela devia ser é muito feliz.
por Lígia